Collor surgiu no cenário nacional com a alcunha de “caçador de marajás”, e de implacável com os desmandos. O discurso não equivaleu à prática (foto: Valério Ayres/CB/D.A Press – 18/10/1989).

Brasil completa três décadas do voto direto para presidente

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O Brasil é outro, mas algumas coisas não mudaram tanto assim. Numa comparação entre o cenário político e o econômico de 1989 e 2018, processos apresentam semelhanças, equívocos se repetem e problemas persistem

Collor surgiu no cenário nacional com a alcunha de “caçador de marajás”, e de implacável com os desmandos. O discurso não equivaleu à prática
(foto: Valério Ayres/CB/D.A Press – 18/10/1989)
O Brasil comemora, nesta semana, 30 anos da retomada do voto direto para presidente da República. O direito de livre escolha da população foi restabelecido depois de 21 anos de ditadura militar (1964-1985) e de um governo civil eleito indiretamente, o que impulsionou a redemocratização. O retorno às urnas foi sob a égide de uma nova Constituição, promulgada no ano anterior. Mas, após três décadas, essa jovem democracia enfrenta o desafio de se manter viva.
Todos queriam participar da corrida presidencial de 1989, de políticos a eleitores, que assistiam aos debates como “se fosse novela das oito”, diz Guilherme Afif Domingos, um dos 22 candidatos à Presidência da República em 1989, pelo PL. Na avaliação dele, uma das principais semelhanças em relação a 2019 foi a fraca participação das grandes legendas.
“Isso se mostrou um retumbante fracasso. A máquina não funcionou, o que funcionou foi o produto”, lembra Afif. Em 15 de novembro de 1989, o então governador de Alagoas, Fernando Collor de Mello, filiado ao PRN, foi eleito diretamente pelos brasileiros para governar o país. Em um corrida com 22 candidatos, venceu, no segundo turno, Luiz Inácio Lula da Silva, líder do PT, em extrema polarização política.

Em 2003, Lula aproveitou o receituário liberal de FHC, mas acrescentou a preocupação social, até então inédita no país. Fora do poder, viu imagem e legado comprometidos com denúncias de corrupção e a condução à prisão
Para o cientista político Lúcio Rennó, da Universidade de Brasília (UnB), tanto em 1989 quanto em 2018 o cenário era propício para a ascensão de alguém de fora do sistema, que representasse o novo, tolerável para o sistema produtivo e com agenda voltada para a modernização econômica.
Collor encarnava a renovação. Mas, três anos depois, renunciou ao mandato e um processo de impeachment no Senado suspendeu seus direitos políticos. O hoje senador Collor (PROS-AL) também vê semelhanças entre seu governo e o de Bolsonaro.
“Certos episódios e eventos me deixam muito preocupado. Talvez não cheguemos a um bom termo sobre o mandato mal exercido pelo presidente da República — a começar por essa falta de interesse em construir uma base sólida de sustentação no parlamento”.
Bolsonaro conquistou a Presidência empunhando bandeiras semelhantes às de Collor, em 1989. O capitão reformado se apresentou com as promessas de combate à corrupção e de renovação política. Foi eleito da mesma forma que o hoje senador, em meio a uma forte polarização política, crise econômica e vencendo, também, em segundo turno, um petista, Fernando Haddad. Em mais uma semelhança com 30 anos atrás, enfileira desafetos políticos.
Momento político
O cientista político Jairo Nicolau, da Fundação Getulio Vargas (FGV), não vê tantas semelhanças entre os pleitos de 2018 e 1989, embora reconheça que a campanha do ano passado também mudou as estruturas da política por não ter sido disputada entre PT e PSDB. “Por isso, se fez analogia com 1989. Os partidos tradicionais também enfrentaram dificuldades e não tinham candidato governista competitivo”.
Segundo ele, em 1989 eram fortes os componentes de empolgação e de envolvimento; em 2018, o cenário foi de “dramas, atentados e prisões”. “As crises dos últimos anos resultaram em raiva e de polarização”.
O cientista político Ricardo Ismael, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, concorda com Jairo, mas aponta uma semelhança: a falta de importância que Bolsonaro dá a uma base estável. “Collor também tinha um discurso de ‘faz e acontece’, como se não precisasse das instituições”.
Âncora econômica
Nos últimos 30 anos, o cenário econômico mudou mais do que o político, avaliam especialistas. Mas os problemas que levam às dificuldades de a economia deslanchar, agora, são outros: se em 1989 a hiperinflação assustava, em 2019 há a necessidade de um ajuste fiscal.
A situação de hoje, para o economista José Ronaldo Souza Júnior, diretor de Estudos e Políticas Macroeconômicas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é completamente diferente daquela de 1989. O problema mais óbvio, lembra, era a inflação, que chegou a quatro dígitos. Já a Previdência não era considerada descontrolada em 1989. Havia mais jovens do que idosos e a expectativa de vida era de 66 anos, pelos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (chegou a 66,93 anos em 1990). Ainda assim, especialistas começavam a alertar para um futuro colapso. “Como ainda não causava efeito, nada foi feito”, diz José Ronaldo.

Bolsonaro galvanizou o antiesquerdismo, mas tem pecado, segundo os críticos, pela autossuficiência política (foto: Evaristo Sa/AFP – 7/9/19 )


A partir da eleição de Collor, foi iniciado um processo de abertura, complementado pelos governos seguintes, lembra Igor Rocha, diretor Econômico da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib). Ele considera que, apesar da agenda liberal, o governo Bolsonaro ainda não mostrou a que veio: o programa de privatizações apresentou poucos resultados em 2019, e, apesar do discurso, algumas interferências do presidente na economia “assustam os investidores”.
Dois Brasis
Inflação
Na época das primeiras eleições diretas para presidente da República da redemocratização, o principal problema do país era a hiperinflação. Os índices chegavam a quatro dígitos em um ano:
1989: 1.972,91%
*2019: 2,49%
Produto Interno Bruto (PIB)
Já o PIB, sem tantos gastos sociais e com a Constituição ainda em fase de adaptação, subia mais do que atualmente:
1989: alta de 3,16%
2018: alta de 1,12%
Índice de Gini
O principal indicador de distribuição, concentração e desigualdade econômica melhorou nos últimos 30 anos.
Os números variam de 0 (perfeita igualdade) até 1 (máxima concentração e desigualdade):
1989: 0,617
2018: 0,509
Distribuição de renda
O dinheiro também passou a ser melhor distribuído, embora ainda com muitas distorções. A porcentagem no bolso dos 10% mais ricos da população diminuiu:
1989: 48,3%
2018: 43,1%

INPC
Nas últimas três décadas, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor, mais usado em reajustes salariais, teve variação expressiva nos últimos anos:
1989: cresceu 36,3%
2019: caiu 0,05%
**Desemprego
Em 1989, estava chegando ao fim a chamada “década perdida”. Com a ligeira recuperação, o nível de desemprego estava baixo. Já em 2019, o Brasil vive um dos momentos mais difíceis no mercado de trabalho:
1989: 3,22%
***2019: 11,8%

  • acumulada no ano, em 2019, até setembro
    ** o IBGE mudou a metodologia entre os dois anos, mas essas são as mais próximas para comparação
    *** em agosto

Fontes: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Eleições presidenciais
1989
Candidatos: 22
Eleitores aptos: 82 milhões
Votos válidos:
66,2 milhões (97,17%)
Votos em branco:
986,4 mil (1,4%)
Votos nulos:
3,1 milhões (4,42%)
Resultado final:
Fernando Collor (PRN) – 53,03%
Luiz Inácio Lula da Silva (PT) – 46,97%
2018
Candidatos: 13
Eleitores aptos: 147,3 milhões
Votos válidos:
104,8 milhões (90,43%)
Votos em branco:
2,5 milhões (2,14%)
Votos nulos:
8,6 milhões (7,43%)
Resultado final:
Jair Bolsonaro (PSL) – 55,13%
Fernando Haddad (PT) – 44,87%

Fonte: Alessandra Azevedo JV Jorge Vasconcellos LC Luiz Calcagno/CB.